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Criança, poesia imaginação e criatividade

Opinião
04 Outubro 2021
04 Outubro 2021

Desde pequenina, minha mãe declamava versinhos para mim. Eram quadrinhas populares que ela aprendera com as mulheres trabalhadoras dos cafezais. Às vezes, tinha um fundo religioso.

Com Seu João Tolão aprendi, nos cafezais, as suas brincadeiras do Pega-Felipe e vinham juntos alguns versinhos populares. Com o tempo, já entrando tarde na escola da Estação Retiro, ouvia a professora Dona Zenaira Caldas Simões Barbosa, antes de começar a aula, declamar poesias. Ela ia de trem de passageiros na escola. Nós, os alunos, ficávamos esperando o trem chegar com flores do campo nas mãos para oferecer-lhe. A escola era de madeira. E tinha uma sala só com três fileiras de carteiras para sentarem dois alunos em cada banco. Primeiro, segundo e terceiro anos. Todos nós fomos alfabetizados com a Cartilha Sodré. D. Zenaira trazia livrinhos de poesias e de contos de fadas. Eu gostava mais das poesias, mas também me atraíam os contos de fadas.

As poesias eram quadrinhas simples que falavam da natureza, dos animais e das flores. Com isso eu aprendi a melhorar um pouco a linguagem que era bem caipira e a conviver com as amiguinhas sempre brincando. Na hora do recreio, colocávamos os paninhos dos lanches no gramado e repartíamos tudo o que tínhamos. Cada uma pegava um pedacinho do seu lanche e colocava no montinho da coleguinha. Assim, todas tinham um pouco de todas. Era bonita a socialização. Tínhamos bonitos vínculos afetivos graças às poesias e contos de fadas que ajudaram muito no desenvolvimento emocional. Isto tudo ajudava a gerar o potencial imaginário e a criatividade sempre com olhar estético para as coisas bonitas do campo.

Nunca brigamos. Íamos à escola: irmãos (Eu, Adelina e Valdemar), primos (Maria e Virgínia) e filhos de colonos (Gervázio, Irene Tolão e outros), a pé andando nas matas de altas árvores e nos campos cheios de frutinhas que já não existem mais. Eram: cajuzinhos, laranjinhas, gabirobas, condinhas, marmelo, frutas do conde, araticum, araçás e outras. Todas as plantas eram rasteiras e deliciosas. Hoje naqueles lugares, antes cheios de florestas e campos, só existem canaviais. Por sorte, há pouco tempo, eu encontrei casualmente, numa floricultura, uma muda da goiabinha do campo hoje chamada de Araçá. Está plantada na minha cozinha e cheia de flores e frutinhas. Ela gosta de sol e água. Com toda esta carga cheia de leveza, de bondade e seriedade na educação recebida no meio do mato, eu senti meu imaginário e minha criatividade nascer.

Eu criava brinquedos, fazia roupinhas e comidinha para as bonecas de pano. À tarde eu brincava de vizinha com as primas Maria, Virgínia e Rita mais as crianças da colônia, lá em cima das mangueiras carregadas de frutas. Cada uma no seu pé com mangas diferentes que, nas visitas, trocávamos as frutas e chupávamos lá em cima, lambuzando a boca e a roupa. No galho maior lá de baixo, havia um balanço por onde voávamos às alturas. À noite, eu tomava banho na tina num quartinho, cujo chão era todo de terra. As necessidades, fazíamos atrás do pé de café que rodeava a casa. Não havia papel higiênico nem banheiro.

Na escola, antes de começar a aula, ouvia a professora recitar poeminhas que me ajudaram a perceber que a linguagem tinha melodia. Hoje sei que poesia e música andam juntas. Como não tínhamos rádio, escutávamos as canções sertanejas dos sanfoneiros que tocavam e cantavam aos sábados na minha casa de chão de terra. Aquelas músicas me ajudaram a entender um pouco a linguagem poética com sua musicalidade, com construções de imagens, com jogos, com associações de palavras e metáforas. Além disso, fui desenvolvendo um olhar curioso do mundo.

Com o tempo, a cidade começou a atrair os pais. Então mudamos para a cidade e fui estudar na Escola Paulino Carlos porque a da fazenda só tinha até o terceiro ano. Na certa repeti por causa da minha linguagem caipira que fazia os colegas rirem de mim. Depois fiz o curso de Admissão na Escola D. Pedro e o exame para entrar na Álvaro Guião. Lá completei o ginásio, o clássico e o magistério. Com várias repetições na Matemática. O bom, para mim, é que os professores de Português gostavam de Literatura e de poesia como Ítalo Savelli e Cecília Pacheco. Ora liam, ora indicavam livros de grandes poetas como os Lusíadas que analisávamos inteirinho. A leitura que eu fazia dos poemas me faziam pensar sobre a melodia, a cadência e as pausas na construção de sentido, ajudando-me a dominar ritmos fundamentais como a respiração, por exemplo. Aprendi a explorar a disposição das palavras no espaço do papel. Além do conteúdo, entendi que a forma tem muito a dizer, por isso, a minha prosa poética tem melodia. A leitura em voz alta me ajudou a desenvolver a atenção, aspectos da oralidade (entonação, acentuação e ritmo) que são fundamentais nas situações de uso da fala em público, embora como eu sempre fora tímida, até hoje não gosto de falar em público nem dar entrevista. Nesse sentido eu dei muita aula com sacrifício sufocado. Finalmente, aprendi que ler poesias pode ser uma ótima oportunidade de mostrar às crianças que as palavras são como brinquedos. E para fazer um poema, basta saber olhar o mundo e combinar palavras de maneiras diferentes do modo objetivo jornalístico ou dos livros científicos, demonstrando, assim, que neste momento acontece a magia da linguagem cheia de sensibilidade. 

 

 1004 Imagem interna Artigo 3 Academica Irene Zanette de Castaneda

 

Irene Zanette de Castañeda ocupa a cadeira nº 1 de Letras, da Academia de Letras, Ciências e Artes da AFPESP; é colunista do Jornal Primeira Página de São Carlos/SP; doutora em Literatura Portuguesa e Brasileira; mestra em Estudos Literários; escritora e poeta. 

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