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"Diálogo Surreal", por Rosemeire Trebi Curilla

Opinião
27 Outubro 2023
27 Outubro 2023

Por Rosemeire Trebi Curilla

        Numa estante da biblioteca ouvi um burburinho. Cheguei mais perto, de mansinho, nenhuma pessoa ali. Notei que algum usuário não atendeu à regra de deixar sobre as mesas livros manuseados. Displicentemente, deixou um livro em qualquer lugar da estante. O pior é que totalmente fora do “endereço” dele e, se não corrigido pelo bibliotecário, outro usuário não o acharia.

        Já ia pegar o livro para inseri-lo no seu local específico, quando ouvi o diálogo. Estarrecido, sentei no chão, porque minhas pernas bambearam. Não conseguindo me mover, fiquei ali “todo ouvidos”, sem acreditar no que ouvia.

       ─ Você está amassando a minha orelha!

       ─ E você está espetando a minha lombada!

       ─ Chegue mais para lá! Aliás, o seu lugar não é aqui!

       ─ A culpa não é minha! Fui jogado aqui! Além de me rabiscar, colocar um peso sobre as minhas páginas, forçando-me a ficar aberto por horas na página 61, o leitor me deixou com umas vinte orelhas! Já me bastam as duas que tenho! Ai, minha lombada! Sinto que está descolando de minhas páginas...

       O livro parecia chorar, como alguém que sentia dor. Eu só podia estar ficando louco. Não eram só minhas pernas... Com certeza, o problema estava também na minha cabeça... “Socorro!”. Gritara, mas a voz não saíra. O que estava acontecendo comigo?

       ─ Aqui é o endereço de livros didáticos, com muito conhecimento para transmitir! Imagine se não fôssemos nós, livros didáticos, o conhecimento da humanidade não se disseminaria e não evoluiria!

       E, sem dó daquele que choramingava ao seu lado, continuou gabando-se:

       ─ Sou um relevante instrumento de divulgação de ideias, conceitos, cultura, valores e crenças! Sou muito importante na vida das pessoas e no desenvolvimento das sociedades! Meu papel é de grande importância na aprendizagem escolar e acadêmica! Em mim, foram depositadas as verdades científicas!

       O outro remexeu-se, descolando-se do colega, e assumindo um tom altivo:

       ─ Ora, ora, você já divulgou por vezes histórias mal contadas! Você não tem a mesma liberdade que tenho de permitir ao leitor inúmeras interpretações, de emocioná-lo, de educar a sua sensibilidade, de humanizar o humano! Eu desperto sentimentos! Meu conteúdo é plurissignificativo!

       E o livro didático, erguendo mais o tom:

       ─ Sou um eficiente suporte ao professor, aos estudantes e a todos que queiram obter conhecimentos produzidos pela humanidade!

       O outro, parecendo ter esquecido da sua dor pelos maus tratos recebidos, retrucou:

       ─ A arte transcende ao mundo fático! É pela poesia que se iniciam todas as literaturas!

       Em frente à estante, o dicionário, que ouvia tudo calado, não aguentava mais aquela discussão. Com receio de como iria terminar, pois os ânimos estavam bastante alterados, deu um basta:

       ─ Calem-se! E ouçam, com atenção: Então, eu deveria gabar-me por ser aquele que é o guardião das palavras? De forma arrogante, eu deveria dizer que sou o mais importante de todos os livros? Que sem mim, os demais não teriam a abundante composição em arranjos semânticos e expressivos adequados, além das condições gramaticais e sintáticas exigidas pela contextualização das palavras nos textos?  Deveria eu bater no peito e dizer em alto e bom som que sou o responsável pelo registro, descrição e manutenção da língua, em constante evolução?

       E continuou o dicionário, com voz branda:

       ─ De nada adiantariam as palavras estáticas, como dizem por aí “em estado de dicionário”, se não tivessem os variados tipos textuais (narrativos, descritivos, dissertativos, explicativos), a diversidade de gêneros (romance, crônica, conto, poesia, biografia, tese, artigo...), as diferentes finalidades (didática, pedagógica, jornalística, literária) e os livros em seus diversos formatos: impresso, digital, áudio-livro... Por isso, deixem de bobagens! Vamos celebrar a nossa existência! O Dia Nacional do Livro está chegando! É no próximo dia 29 de outubro!

       Fez-se um longo silêncio. Foi então que percebi que podia me levantar. Levei o livro de poesias de Carlos Drummond de Andrade para o seu lugar na estante da sala ao lado. Comecei a preparar as atividades para celebrar a data tão significativa! Afinal, foi no dia 29 de outubro de 1810 que a Biblioteca Nacional do Brasil foi fundada no Rio de Janeiro. Eu deveria também concluir a exposição sobre a vida e obra de Drummond para o dia 31 de outubro, Dia Nacional da Poesia, em homenagem ao seu nascimento.

1027 Imagem interna Dia do Livro Dialogo SurrealNo dia 29 de outubro é comemorado o Dia Nacional do Livro e dia 31 de outubro o Dia Nacional da Poesia, em homenagem ao nascimento de Carlos Drummond de Andrade. Foto: iStock.

Sobre a autora

Rosemeire Aparecida Trebi Curilla é graduada em pedagogia pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) e magistério das disciplinas pedagógicas do segundo grau pela UNESP-Araraquara. Pós-graduada em educação infantil e gestão escolar, pela UFSCar; pós-graduada em análise do comportamento aplicada ao autismo, atrasos de desenvolvimento intelectual e de linguagem, pela UFSCar; pós-graduanda em psicopedagogia clínica e institucional, pela UFSCar.  Mestre em gestão de organizações e sistemas públicos, pela UFSCar. Pedagoga e psicopedagoga. 

Servidora pública aposentada no cargo de pedagoga do Núcleo de Formação de Professores da UFSCar. Membro da Academia de Letras, Ciências e Artes (ALCA) da AFPESP (cadeira nº19 de Letras – patrono: Coelho Neto); membro e vice-presidente da Academia Literária de São Carlos (Cadeira nº2 – patrono: Homero Frei). Tem experiência na área de educação, atuando principalmente nos seguintes temas: educação, formação de professores, educação matemática, cultura, literatura brasileira, literatura infanto-juvenil e poesia.   Por mais de uma década, coordenou o projeto de extensão universitária Vivenciando a Poesia, que integrou o eixo 2: fomento à leitura e à formação de mediadores do Plano Nacional do Livro e Leitura (PNLL).

Autora dos livros: "A Menina Nina e sua Horta Torta"; "Eliseu e suas Descobertas": "O Ano; Poetando – um pequeno ensaio"; "Fufa Formiga em Maior e Menor" (coautora). Premiada em concursos de abrangência nacional e estadual; textos em prosa e verso publicados em 14 antologias literárias

1027 Imagem interna Dia do Livro Dialogo Surreal 2             Rosemeire Aparecida Trebi Curilla é membro da Academia de Letras, Ciências e Artes (ALCA) da AFPESP, ocupante da cadeira nº19 de Letras.
               

 

 

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