Dagoberto José Fonseca é servidor público, professor do Departamento de Ciências Sociais da Unesp, membro da Comissão Nacional da Verdade sobre a Escravidão Negra e o primeiro a suspeitar que o mais antigo cartório de Araraquara guardava o maior acervo de documentação sobre a escravidão já identificado em toda a América Latina
Por Andréa Ascenção
Neste 13 de Maio, Dia da Abolição da Escravatura, a Folha do Servidor entrevistou o antropólogo, professor do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Estadual Paulista (Unesp), membro da Comissão Nacional da Verdade sobre a Escravidão Negra no Brasil, Dagoberto José Fonseca, a primeira pessoa a suspeitar que o mais antigo cartório de Araraquara (SP) guardava o maior acervo de documentação sobre a escravidão já identificado em toda a América Latina.
Folha do Servidor: Há 135 anos a assinatura da Lei Áurea, oficialmente, libertou os escravizados negros no Brasil. Apesar de ser uma conquista do movimento abolicionista, a data ficou marcada, inclusive nos livros de história, como um ato heroico da princesa Isabel. Ela se tornou a protagonista desta história. Além disso, a lei não veio acompanhada de políticas que considerassem incluir os negros libertos na sociedade. Na sua opinião, ao manter o Dia da Abolição da Escravatura no calendário escolar, o que está sendo ensinado para as novas gerações?
Dagoberto Fonseca: Essa pergunta suscita várias respostas. Eu acho que continua sendo importante manter no processo educacional das crianças porque, como dizia o professor Paulo Freire – com quem eu tive a felicidade de trabalhar na Secretaria Municipal de Educação em São Paulo –, nós sabemos o que é errado, mas precisamos fazer o certo. Parece que a princesa Isabel, quando assina a Lei Áurea, é boa, uma redentora. Eu entendo perfeitamente quando os historiadores fizeram isso. É uma ação benevolente da princesa Isabel, mas o que a gente precisa fazer é, fundamentalmente, conversar em torno do porquê ela assinou a Lei Áurea, e aí a importância da data vem. O 13 de Maio não é uma data dada, é uma data conquistada com muitos esforços da população negra escravizada no Brasil por muito tempo. E de outro lado você tem todo o movimento abolicionista de negros. Muito se fala de Joaquim Nabuco. Ele era um membro de um movimento abolicionista, e a gente precisa considerar que há mais de um movimento abolicionista naquele período, conduzido também por José do Patrocínio; Luiz Gama; Antônio e, seu irmão mais famoso, André Rebouças; Antônio Dantas e Antônio Bento. Tem um conjunto de outros também trabalhando em prol disso. Dentro desse contexto tem uma população negra esclarecida, estudada, parte da elite econômica e política do país naquele momento, mas que está fazendo projetos para o Brasil sair da condição de último país que mantém o escravismo no hemisfério ocidental. Então, quando o Luiz Gama diz, nos termos daquele momento, “um negro que mata o senhor o faz em legítima defesa” – e ele está dizendo isso em um tribunal, um parlamento – está suscitando que existe luta na sociedade desde Palmares [Capitania de Pernambuco, atual estado de Alagoas] e tantas outras lutas, como o levante que acontece em 1835, chamado Revolta dos Malês, em Salvador. Então, o 13 de Maio é uma ação de conquista social por parte de alguns brancos e de uma imensa maioria negra no Brasil. Esse é o primeiro ponto que deve ser ensinado às crianças. O segundo ponto é justamente considerar que esta população que estava lutando não estava propondo uma liberdade pela liberdade, estava propondo uma liberdade com processo de políticas públicas, com reparação, compensação, indenização, que a gente vem chamar hoje de políticas de ações afirmativas. Por exemplo, na proposta de José do Patrocínio, não é possível dar a liberdade sem considerar a necessidade de fazer com que essa população esteja colocada no ambiente escolar educacional e tenha educação profissional. Isso virou o Sistema S: Senai, Sesi, Senac, mas quem ocupa isso no final do século XIX são os chamados imigrantes europeus que vieram para o Brasil. Só que eles vieram ocupar espaço em projetos e políticas públicas para a população negra. A gente não discute isso, muita gente não sabe. Nos Estados Unidos se fez a doação de uma mula, alguns alqueires de terra e insumos para plantar. Quando a gente olha para oprojeto de política pública de André Rebouças era uma proposta de reforma agrária que atenderia a população negra no país submetido a escravismo por quase 400 anos.
Quando se assina a Lei Áurea, se assina uma parte daquilo que deveria vir.
A carta da Princesa Isabel, encontrada junto aos espólios do Barão de Mauá, que ela escreve em agosto de 1889, traz sobretudo a questão de uma reforma agrária. Ela diz que vai fazer esse projeto e encaminhar à Câmara do Senado no Império, no dia 20 de novembro de 1889. Nessa mesma carta também havia um sufrágio universal. Ela diz que, se a mulher pode governar, a mulher pode votar. Cinco dias antes isso desaparece da agenda política porque acontece um golpe de estado em 15 de novembro de 1889, que a gente comemora como sendo a Proclamação da República. As datas podem ser importantes, mas precisamos ensinar às crianças os fatos, como eles se dão e como aconteceram, não como uma versão de algo que ocorreu e a gente pinta de bonito. E é bonito quando a gente olha para isso e entende uma outra coisa, que o sufrágio universal feminino só veio na década de 30, ou seja, demorou 40 anos para que as mulheres pudessem votar, e ainda votaram no contexto de uma ditadura (de Vargas). No entanto, a reforma agrária para atender à população negra nunca aconteceu nesse país. O 13 de Maio continua sendo uma reivindicação porque, como a própria princesa Isabel diz na carta, a abolição assinada tem que ser completada, mas não foi. E nós sabemos a repercussão disso hoje: a imensa maioria da população negra não tem acesso à terra, vive de aluguel, quando está na condição de pagar aluguel. Daí vamos entender o porquê de a imensa população negra que está na situação de rua é majoritária em relação a qualquer outro grupo populacional. É ela que se mantém na condição de analfabetizada, sem acesso à saúde de qualidade. Tudo isso dá conta, portanto, de entendermos que o 13 de Maio é um marco de uma história que não acabou. É de fundamental importância que a gente estude o 13 de Maio para conseguirmos discutir o quea República fez que efetivamente se tornou a República de poucos, não de todos.
FS: O Cartório do Primeiro Tabelião de Notas e de Protesto de Araraquara é o cartório mais antigo da cidade. Recentemente, uma documentação inédita sobre a venda e compra de escravizados na região foi encontrada e publicada no livro “A História Comprovada: fatos reais e as dores da escravização araraquarense”. Quem e em que situação suspeitou que esse cartório poderia ter esse tipo de registro?
DF: Desde a chamada Independência do Brasil, em 7 de setembro de 1822,já se sabia que a abolição iria acontecer mais dia, menos dia. Não é possível o Brasil se tornar independente de Portugal quando a maioria do seu povo continua sendo escravizada. Não é possível manter-se numa condição de lutar pela independência do país e não ver a independência do seu povo majoritário, a população negra, e uma população indígena submetida à tutela. Dentro desse contexto, a partir de 1822 acontecem muitas lutas em todas as Américas. Alguns países procuram eliminar a população, como a Argentina. O Brasil tentou fazer isso na Guerra do Paraguai, eliminar o máximo possível de população negra. Chega o 13 de Maio e a grande questão que se coloca é quem vai indenizar quem. Na literatura romântica escrita no período vai se dizer que Ruy Barbosa estava muito preocupado em queimar documentação em função de que os fazendeiros, ex-escravistas queriam uma indenização. Isso é votado e vai, portanto, para o Executivo. E quem executa naquele momento não é o próprio Ministro da Fazenda, Ruy Barbosa. Ele dá a ordem, mas naquele momento ele já saiu, está concorrendo à presidência do Brasil. E tem um interino no lugar dele, que dá sequência à ordem. Uma mulher assina a Lei Áurea, na sequência os homens (militares, ex-escravistas) dão um golpe de estado, retiram essa mulher e cai o Império no Brasil. Imagine, não tem dinheiro para indenizar todo mundo. Então, vamos queimar a documentação, assim ninguém recebe nada.
A Lei Áurea foi escrita para não pegar.
Nem o escravista e nem o escravizado iriam receber [indenização], queima-se tudo. Alguém vai dizer: não, a minha documentação eu não vou queimar porque eu sei quais são os interesses do Estado, não me indenizar, não me compensar [pela perda de mão de obra]. Pegando o caso de Araraquara: essas pessoas são os próprios donos de cartórios, que são gente poderosa e com posse, que tinha posse de escravizados e tantos outros cúmplices familiares, parceiros no crime do escravismo. Então, se guarda essa documentação e o cartório se torna fiel depositário de algo que é privado. Como eu não acredito em Papai Noel e cegonha, eu também não acreditei que todo mundo tivesse queimado a documentação porque algum ministro da Fazenda pediu. Mas eu não tinha materialidade nas coisas, até que um dia, por volta de 2011/2012, conversando com um amigo, o professor da Unesp Ademil Lopes, que também estava encafifado com essas coisas, soube que ele achou um documento de compra e venda da sua bisavó na Fundação Pró-Memória de São Carlos. Ele já estava pesquisando algumas coisas, pegou essa documentação, fez um livro e eu acabei prefaciando esse livro. Li o livro todo e com esse conjunto de informações, eu que sou uma pessoa descrente nessa área, quero verificar. Em 2015 se constituiu no Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), a Comissão Nacional da Verdade sobre a Escravidão Negra no Brasil, que me convida para ser um dos consultores. Eu aceitei prontamente, mas dizia para eles: eu posso ser consultor aqui no estado de São Paulo. Aqui eu consigo dar conta. Conversei com a minha advogada; membros da OAB; professores da Unesp; da universidade local privada, a Uniara, e a comunidade negra de Araraquara. Eu falei: vão ao cartório. Eu não tenho as condições de fazer isso porque eu não sou historiador, sou um cientista social, mas vocês são a OAB. Envolvemos a Câmara Municipal de Araraquara nesse processo para que os vereadores solicitassem junto a um juiz ou desembargador que o cartório abrisse os documentos da escravidão negra aqui em Araraquara. “Ah, não existe porque o Ruy Barbosa mandou queimar”. Se ele mandasse você queimar, você queimaria? “Eu não”. Então, outros também não queimaram. Pode ser que esteja na casa das pessoas, mas como o cartório guarda a concepção de que ele é o fiel depositário de um documento que tem valor, então está no cartório. A Câmara fez uma comissão de parlamentares, foram até o juiz, até o desembargador. O pessoal da OAB foi junto e se conseguiu o que o Primeiro Cartório aqui de Araraquara abrisse os documentos do período. E, pasme, o cartório é fundado em 1831, início do nosso chamado tráfico interno. Em 1831 temos a primeira lei que fala do fim de tráfico, só que nem o Império cumpre essa lei. Até 1850 continua-se trazendo população africana para cá. Mas já se sabia que existe pressão interna e externa. Vai acabar, mas enquanto isso, vamos trazendo a população africana para cá. O cartório de Araraquara é criado para efetivar e legalizar esse tipo de comércio. Lá se levanta uma vasta documentação. Tivemos acesso à documentação de 1874 a 1887. São 13 anos que nos dão conta de um material vastíssimo que tem quase 500 páginas, levantadas de 2015 para 2016. Uma professora da Unesp, Claudete, vai verificar enquanto historiadora se de fato essa documentação era legítima. Ela diz que a documentação é real, que o professor Dagoberto tinha razão. A luta era tornar esse material público, mas aí há resistência de várias ordens. Os membros da própria OAB do período não quiseram ir muito à frente, vai se mudando a lógica política na cidade, os vereadores também não se veem muito interessados, de modo que as coisas pararam. Com a nova conjuntura social que foi se apresentando, com mudança do quadro daqueles que estão à frente da OAB de Araraquara, daqueles que compõem a câmara municipal e a sociedade entendendo, começa a se olhar para aquelas questões de suma importância. Se chega efetivamente a conversar novamente com juiz, desembargador e se autoriza a publicidade desse material mediante a digitalização de toda a documentação no final de 2022.
FS: Quais são os próximos passos?
DF: Eu quero saber o que tem de documentação em algumas cidades do estado de São Paulo. A própria cidade de São Paulo, mas, fundamentalmente, de Campinas, a última cidade deste país a abolir e aceitar a abolição da escravatura como uma política pública necessária. Nós temos muito mais perguntas a fazer e muito mais respostas a obter, mas a gente precisa abrir os cartórios desse país. E eu tenho insistido em todas as entrevistas que tenho dado que o ministro Silvio Almeida, o ministro Flávio Dino, a ministra Margareth Menezes, a ministra Anielle Franco entendam que Araraquara apenas abriu as portas do inferno ou do paraíso, dependendo do ângulo que se enxerga as coisas. O fundamental é que todos esses documentos do Brasil afora precisam ser assegurados para se fazer reparação histórica, política pública séria e um país que possa ser de fato Republicano.
FS: A partir da descoberta desse tipo de documentação é possível fortalecer as práticas antirracistas?
DF: Com certeza. A gente constrói o antirracismo quando eu escrevo no prefácio desse livro [“A História Comprovada: fatos reais e as dores da escravização araraquarense”], que é composto por cartas dos documentos de compra e venda e, no seu início, de prefácios de diversas pessoas até para dar ao leitor daquela documentação a noção do que tem ali. Nós não queremos vingança, queremos justiça. E a justiça só pode vir se houver por parte da outra parte, ou seja, da população branca, o reconhecimento de que um crime foi cometido no passado por parte de seus familiares e esse crime é um crime de lesa-humanidade, como diz a própria Constituição de 1988, e a ONU ratifica isso em 2001. Racismos, colonialismos e escravismos são crimes de lesa-humanidade. Logo, são crimes imprescritíveis. No passado a população negra constituiu o movimento negro brasileiro, que por sua vez constituiu uma base que está presente no Brasil e demais países, inclusive na África do Sul, a noção de consciência negra. O que a gente precisa é um processo de conscientização do que significou o passado e como esse passado ainda continua nos violentando. Mas nem todos os brancos estão prontos para entender isso. Então, nós vamos ter que fazer com que os brancos que já entendam participem deste movimento de condição de uma sociedade antirracista porque a base da manutenção do escravismo ou do racismo no presente são as bases que colocaram essa condição social nos 400 anos de escravismo no Brasil, de violência sistêmica.
FS: Algum descendente de escravizados pôde remontar sua árvore genealógica ao ter acesso à documentação encontrada no cartório de Araraquara?
DF: Desde 2015, quando se falou dessa Comissão da Verdade sobre Escravidão Negra, o cineasta [e jornalista] Márcio Cruz, que hoje mora em Paris [França], ficou atento. Ele tem família em Penápolis (SP) e veio conversar comigo aqui em casa. Ele foi atrás e conseguiu o batizado do bisavô dele. Montou toda a árvore genealógica, mas faltam algumas peças. Ele me mostra o documento de batizado do bisavô, aparece o nome da tataravó, negra, escrava... e aparece o nome do pai da criança: Fulano Pinto Ferraz. Quando eu olho, pergunto: Marcio, você sabe do que está falando? Ele: “sim, Dagoberto, eu tenho noção do que esse documento implica”. Eu falei: você está mexendo com uma das famílias mais poderosas e tradicionais de Araraquara, os Pinto Ferraz. O que você quer? Ele falou: “Até quando eu consegui esse documento só queria fazer um documentário da minha família, mas quando vem a Comissão da Verdade sobre Escravidão Negra no Brasil e você diz da importância dos documentos não só para que a gente possa fazer uma outra coisa que não seja reparação, indenização, compensação e ressarcimento, se coloca para mim uma outra questão que eu não havia pensado”. Eu falei: você tem que entender o quadro. Nós estamos diante de um crime imprescritível. Você tá trazendo um documento que comprova que tal pessoa é seu bisavô. Logo, o crime cometido atinge toda a família do Márcio no presente. Cabe à família dele saber o que querem. Não sou eu que tenho que dizer o que vocês querem. Ele perguntou: “Como assim?”. Você simplesmente pode pedir para os representantes da família Pinto Ferraz hoje que eles peçam perdão à sua família, mas será que seus irmãos, primos, tias, tios, toda essa trama familiar aceita simplesmente que uma outra família diga “desculpe, me perdoe”? Será que alguém dirá, inclusive você, Márcio: “eu quero a minha parte em dinheiro, em terras, em políticas públicas ou que se faça um memorial? É assim que as coisas estão sendo feitas, umpode não querer, mas outros podem. Cada um vai ser dono do seu destino. A possibilidade está aí. Se vai fazer isso individualmente, coletivamente eu não sei. No caso do Márcio Cruz ele dizia que não estava preparado para isso: “Eu nunca parei para pensar sobre isso, só queria fazer um filme”. A sociedade brasileira terá que passar por uma terapia coletiva para o entendimento maior e melhor da sua própria realidade.
FS: Existe algum projeto para escalonar esse tipo de consulta e cruzamento de dados que o Márcio Cruz fez para toda a população, inclusive para que pessoas que não estejam tão inseridas nesse debate possam ter acesso a esses dados de maneira fácil e quem sabe obter informações sobre a sua própria história?
DF: Esse é o trabalho futuro. No momento, as pessoas estão impactadas com relação a isto. Existem alguns movimentos que precisam ser feitos de maneira sistematizada. O primeiro é: o documento em si não é fácil de ser lido porque tem uma linguagem do período do século XIX, uma linguagem documental cartorial. A gente precisa transcrever traduzindo para o português nos dias de hoje sem perder a questão da base legal, sendo fiel ao que está ali. O segundo passo é levantar o que é mais fácil: o nome das famílias compradoras e vendedoras. É só colocar numa tabela. Aí precisa cruzar como quem está vinculado, por exemplo, com a família Capote, que ainda hoje são os donos do primeiro cartório de Araraquara. A partir daí você consegue fazer o primeiro cruzamento e limpar a documentação. O próximo passo é olhar na documentação quem são essas pessoas negras que aparecem apenas o primeiro nome, mas esse primeiro nome delas você pode cruzar com outras possibilidades, de outros registros. Depois a gente vai voltar aos séculos anteriores para tentarmos localizar o navio em que essas pessoas vieram para o Brasil porque existe um número de matrícula para as que entraram oficialmente. As que entraram clandestinamente, ilegalmente, contrabandeadas, talvez, a gente não consiga. Por exemplo: tem uma família negra, histórica, conhecida chamada Laurindo aqui em Araraquara. E tem um Laurindo que foi comprado e foi vendido. Provavelmente, ele é o fundador dessa família, mas eu não posso dar certeza porque a gente vai ter que cruzar informações. Tem muita coisa para ser feita ainda.
FS: A família Laurindo sabe desse processo que está se iniciando?
DF: Sim. Alessandra de Cássia Laurindo é hoje a coordenadora de Políticas Etnico-Raciais do município de Araraquara.
FS: Professor Dagoberto, como tem sido para o senhor lidar com todas essas possibilidades de descobertas?
DF: Vou te confessar que está sendo muito difícil do ponto de vista sentimental. Eu nasci em São Paulo, mas a minha família de parte de pai é de Indaiatuba e a minha família por parte de mãe é de Franca. Eu tenho uma orientanda cujo projeto de pesquisa dela de doutoramento é justamente levantar essas famílias negras em Franca e ela está chegando muito perto da história da minha mãe. Eu fico olhando aqui para Araraquara, mas eu fico me transportando para aquilo que eu posso encontrar em Franca e Indaiatuba. E Franca é o limite do estado de São Paulo para Minas Gerais, dentro desse quadro é o tráfico interno acontecendo. Emocionalmente estou bem por enquanto. Sentimentalmente estou sensível porque estou falando do outro, mas é do outro que toca também a minha história. Aí eu tenho outro problema, uma coisa vai puxando outra e você não tem controle do que vai acontecendo. Saiu uma matéria na Folha de S.Paulo sobre uma senhora, dona Helena, 98 anos, que é uma das últimas descendentes diretas de escravizados no Brasil e o meu amigo-irmão Filipe Zau, que é ministro da Cultura, Turismo e Ambiente de Angola, me mandou um WhatsApp: “Dagoberto, por favor, localize essa mulher e veja se ela tem interesse de vir para Angola”. Ela fala na matéria que quer conhecer a terra dos seus antepassados. E o que o Filipe fala que a gente tem que conversar em torno do turismo de memória, trazer essa população para África. Semana retrasada eu fui até Santos para conversar pessoalmente com a dona Helena e me peguei olhando para essa relação: Araraquara, a dona Helena, o Filipe Zau, o Márcio Cruz. Começa a se abrir e fechar alguma coisa que eu não sei ainda o que é. São muitas coisas acontecendo. Como diz Filipe Zau para mim: “é hora de nós, de fato, fazermos com que o Atlântico, seja o nosso caminho de ida e de volta e nos reconhecemos enquanto parte do mesmo grupo social para que os nossos antepassados possam descansar no seio de uma família, porque eles foram apagados e esquecidos, mas começam a ser reconhecidos agora.