Por Rosemeire Trebi Curilla
Numa estante da biblioteca ouvi um burburinho. Cheguei mais perto, de mansinho, nenhuma pessoa ali. Notei que algum usuário não atendeu à regra de deixar sobre as mesas livros manuseados. Displicentemente, deixou um livro em qualquer lugar da estante. O pior é que totalmente fora do “endereço” dele e, se não corrigido pelo bibliotecário, outro usuário não o acharia.
Já ia pegar o livro para inseri-lo no seu local específico, quando ouvi o diálogo. Estarrecido, sentei no chão, porque minhas pernas bambearam. Não conseguindo me mover, fiquei ali “todo ouvidos”, sem acreditar no que ouvia.
─ Você está amassando a minha orelha!
─ E você está espetando a minha lombada!
─ Chegue mais para lá! Aliás, o seu lugar não é aqui!
─ A culpa não é minha! Fui jogado aqui! Além de me rabiscar, colocar um peso sobre as minhas páginas, forçando-me a ficar aberto por horas na página 61, o leitor me deixou com umas vinte orelhas! Já me bastam as duas que tenho! Ai, minha lombada! Sinto que está descolando de minhas páginas...
O livro parecia chorar, como alguém que sentia dor. Eu só podia estar ficando louco. Não eram só minhas pernas... Com certeza, o problema estava também na minha cabeça... “Socorro!”. Gritara, mas a voz não saíra. O que estava acontecendo comigo?
─ Aqui é o endereço de livros didáticos, com muito conhecimento para transmitir! Imagine se não fôssemos nós, livros didáticos, o conhecimento da humanidade não se disseminaria e não evoluiria!
E, sem dó daquele que choramingava ao seu lado, continuou gabando-se:
─ Sou um relevante instrumento de divulgação de ideias, conceitos, cultura, valores e crenças! Sou muito importante na vida das pessoas e no desenvolvimento das sociedades! Meu papel é de grande importância na aprendizagem escolar e acadêmica! Em mim, foram depositadas as verdades científicas!
O outro remexeu-se, descolando-se do colega, e assumindo um tom altivo:
─ Ora, ora, você já divulgou por vezes histórias mal contadas! Você não tem a mesma liberdade que tenho de permitir ao leitor inúmeras interpretações, de emocioná-lo, de educar a sua sensibilidade, de humanizar o humano! Eu desperto sentimentos! Meu conteúdo é plurissignificativo!
E o livro didático, erguendo mais o tom:
─ Sou um eficiente suporte ao professor, aos estudantes e a todos que queiram obter conhecimentos produzidos pela humanidade!
O outro, parecendo ter esquecido da sua dor pelos maus tratos recebidos, retrucou:
─ A arte transcende ao mundo fático! É pela poesia que se iniciam todas as literaturas!
Em frente à estante, o dicionário, que ouvia tudo calado, não aguentava mais aquela discussão. Com receio de como iria terminar, pois os ânimos estavam bastante alterados, deu um basta:
─ Calem-se! E ouçam, com atenção: Então, eu deveria gabar-me por ser aquele que é o guardião das palavras? De forma arrogante, eu deveria dizer que sou o mais importante de todos os livros? Que sem mim, os demais não teriam a abundante composição em arranjos semânticos e expressivos adequados, além das condições gramaticais e sintáticas exigidas pela contextualização das palavras nos textos? Deveria eu bater no peito e dizer em alto e bom som que sou o responsável pelo registro, descrição e manutenção da língua, em constante evolução?
E continuou o dicionário, com voz branda:
─ De nada adiantariam as palavras estáticas, como dizem por aí “em estado de dicionário”, se não tivessem os variados tipos textuais (narrativos, descritivos, dissertativos, explicativos), a diversidade de gêneros (romance, crônica, conto, poesia, biografia, tese, artigo...), as diferentes finalidades (didática, pedagógica, jornalística, literária) e os livros em seus diversos formatos: impresso, digital, áudio-livro... Por isso, deixem de bobagens! Vamos celebrar a nossa existência! O Dia Nacional do Livro está chegando! É no próximo dia 29 de outubro!
Fez-se um longo silêncio. Foi então que percebi que podia me levantar. Levei o livro de poesias de Carlos Drummond de Andrade para o seu lugar na estante da sala ao lado. Comecei a preparar as atividades para celebrar a data tão significativa! Afinal, foi no dia 29 de outubro de 1810 que a Biblioteca Nacional do Brasil foi fundada no Rio de Janeiro. Eu deveria também concluir a exposição sobre a vida e obra de Drummond para o dia 31 de outubro, Dia Nacional da Poesia, em homenagem ao seu nascimento.
Sobre a autora
Rosemeire Aparecida Trebi Curilla é graduada em pedagogia pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) e magistério das disciplinas pedagógicas do segundo grau pela UNESP-Araraquara. Pós-graduada em educação infantil e gestão escolar, pela UFSCar; pós-graduada em análise do comportamento aplicada ao autismo, atrasos de desenvolvimento intelectual e de linguagem, pela UFSCar; pós-graduanda em psicopedagogia clínica e institucional, pela UFSCar. Mestre em gestão de organizações e sistemas públicos, pela UFSCar. Pedagoga e psicopedagoga.
Servidora pública aposentada no cargo de pedagoga do Núcleo de Formação de Professores da UFSCar. Membro da Academia de Letras, Ciências e Artes (ALCA) da AFPESP (cadeira nº19 de Letras – patrono: Coelho Neto); membro e vice-presidente da Academia Literária de São Carlos (Cadeira nº2 – patrono: Homero Frei). Tem experiência na área de educação, atuando principalmente nos seguintes temas: educação, formação de professores, educação matemática, cultura, literatura brasileira, literatura infanto-juvenil e poesia. Por mais de uma década, coordenou o projeto de extensão universitária Vivenciando a Poesia, que integrou o eixo 2: fomento à leitura e à formação de mediadores do Plano Nacional do Livro e Leitura (PNLL).
Autora dos livros: "A Menina Nina e sua Horta Torta"; "Eliseu e suas Descobertas": "O Ano; Poetando – um pequeno ensaio"; "Fufa Formiga em Maior e Menor" (coautora). Premiada em concursos de abrangência nacional e estadual; textos em prosa e verso publicados em 14 antologias literárias
Rosemeire Aparecida Trebi Curilla é membro da Academia de Letras, Ciências e Artes (ALCA) da AFPESP, ocupante da cadeira nº19 de Letras. | |||||||