As vítimas do racismo estão por toda parte, em todos os espaços. São fruto de um passado recente, em processo inicial de desconstrução
Neste ano, o feriado de 20 de novembro, Dia da Consciência Negra, foi adiantado para 21 de maio devido às medidas de prevenção à pandemia, mas hoje é a data oficial reivindicada pelo movimento negro para representar e reconhecer a luta por direitos de afro-brasileiros. O dia escolhido remonta a data de morte de Zumbi, líder do Quilombo dos Palmares e símbolo da resistência de negros escravizados no Brasil.
O Brasil foi o país onde mais atracaram navios que traziam negros à força. O Banco de Dados do Tráfico de Escravos Transatlântico (slavevoyages.org) estima que escravos vindos em viagens documentadas representam quatro-quintos do número de africanos transportados pelo oceano Atlântico. Apenas os barcos com bandeira de Portugal/Brasil chegaram a transportar 5,8 milhões de escravos de 1514 a 1866.
O Brasil foi o último país do Ocidente a abolir a escravidão. Neste ano, a Lei Áurea completou 132 anos, mas a assinatura da princesa Isabel não sancionou políticas que considerassem inserir os ex-escravos na sociedade. Até a Constituição de 1891, aqueles que tivessem nascido na África eram proibidos de frequentar escolas públicas brasileiras – “ainda que libertos”, especificava a lei no Rio de Janeiro. Até 1934, aos negros era negado o direito de votar.
“A Lei Áurea não traz qualquer mudança estrutural social para a população negra. Antes da abolição, o Estado brasileiro agiu para garantir a exclusão e o extermínio do corpo negro. A construção do Estado-nação moderno brasileiro não buscou qualquer ruptura com a sociedade colonial. Pelo contrário, buscou garantir os privilégios da população branca. Não tem como falar em mudança após escravidão, uma vez que a estrutura do Estado brasileiro se fundou nos paradigmas racistas”, elucida a bacharel em Direito Rebeka Lima Cavalcante.
Em entrevista para Felipe Betim, publicada no El País Brasil, em 23 de agosto, o advogado e filósofo, Silvio Luiz de Almeida, detalhou essa estrutura: “Temos um sistema de Justiça que funciona a partir do que chamamos de seletividade. Ele é parte de uma estrutura social que precisa funcionar reproduzindo uma lógica socioeconômica de desigualdades, uma lógica de separação que precisa o tempo todo ser alimentada e que vai organizar tanto a economia como também as próprias instituições políticas. O que a gente já chama de desigualdade racial e de desigualdade econômica é naturalizado e é tecnicamente construído a partir da atuação do sistema de Justiça. Ele não produz apenas efeitos políticos, mas também no imaginário. Por exemplo, ao insistir na associação de pessoas negras com criminalidade e com pobreza. Funciona como confirmação de um imaginário social racista, que é o mesmo imaginário que alimenta a conivência ou nossa indiferença em relação às mortes que ocorrem nas periferias do mundo. É ingenuidade achar que o sistema de Justiça e o próprio Direito, tanto como teoria quanto como tecnologia, não estão imbricados com o funcionamento da economia e com o funcionamento também da lógica das hierarquias políticas”.
Cultura afro-brasileira em São Paulo
Foi na comunidade do Canindé, em São Paulo, que o jornalista Audálio Dantas encontrou pela primeira vez Carolina Maria de Jesus, neta de um ex-escravo, negra, mãe solteira, indigente e catadora de papéis, ferro e outros materiais recicláveis. O ano era 1958. Audálio andava pela região há três dias, procurando personagens que mostrassem o cotidiano de uma favela, quando viu Carolina ameaçar denunciar algumas pessoas que estavam destruindo os brinquedos de uma praça próxima ao Canindé. “Ela falava alto, dizia que ia botar o pessoal no livro. Aí quis saber qual era o livro. Então, ela me mostrou os cadernos dela no barraco. No meio, tinha esse diário, que me chamou a atenção. Era de uma força muito grande e fazia uma reportagem sobre a favela que nenhum repórter poderia fazer. Ela já tentava publicar fazia anos e viu em mim uma oportunidade”, recordou Audálio em entrevista para Maurício Meirelles, publicada no site O Globo em 13 de março de 2014.
A primeira reportagem que contava sobre as escritas de Carolina foi publicada na Folha da Noite no dia 9 de maio de 1958. Dois anos depois, nasceu um recorde literário no Brasil: Quarto de despejo: diário de uma favelada. Foi o primeiro livro publicado de Carolina e vendeu cem mil exemplares, trinta mil só na primeira edição. Foi traduzido para 13 idiomas e distribuído em mais de quarenta países.
Carolina foi morar em um sítio na zona sul de São Paulo e, nos anos seguintes, publicou Casa de alvenaria (1961), Pedaços de fome (1963) e Provérbios (1963), que não alcançaram o mesmo sucesso. Por volta de 1966, voltou a ser catadora. Em 1977, distante dos holofotes da imprensa nacional e da internacional, uma crise de asma colocou um ponto-final em sua biografia. Décadas mais tarde, foi a vez de Rebeka cruzar caminho com Carolina. Em 2019, a então estudante na Faculdade de Direito de Ribeirão Preto, da Universidade de São Paulo (USP), recebeu uma bolsa de iniciação científica da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) para desenvolver o trabalho “Segregação espacial urbana a partir da literatura caroliniana: como age um estado racializado?”. Literatura caroliniana se refere a todos os livros de Carolina Maria de Jesus, inclusive o póstumo Diário de Bitita. “Para além de um sucesso literário, a história da Carolina evidencia o processo de epistemicídio. A trajetória da Carolina não se trata de uma exceção, mas do processo de exclusão do saber negro. A mídia e o mercado literário branco buscavam a submissão do corpo negro. Quando a autora rompe com esse processo, é reservado o espaço de esquecimento”, reflete Rebeka, que, ao usar a palavra “epistemicídio”, se firma na definição da filósofa Sueli Carneiro, referência no debate racial no Brasil: “O epistemicídio é, para além da anulação e da desqualificação do conhecimento dos povos subjugados, um processo persistente de produção da indigência cultural: pela negação ao acesso à educação, sobretudo de qualidade; pela produção da inferiorização intelectual; pelos diferentes mecanismos de deslegitimação do negro como portador e produtor de conhecimento e de rebaixamento da capacidade cognitiva pela carência material e/ou pelo comprometimento da autoestima pelos processos de discriminação correntes no processo educativo”.
Ações afirmativas
Carolina morreu antes de a Constituição de 1988 tornar o racismo um crime inafiançável, imprescritível e passível de pena no Brasil; antes de a Lei no 10.639/2003 determinar a obrigatoriedade do ensino da história afro-brasileira nas escolas; antes de a Lei no 12.519/2011 instituir o Dia Nacional de Zumbi e da Consciência Negra, no dia 20 de novembro; antes de a Lei de Cotas, uma medida temporária de 2012, tentar compensar grupos tradicionalmente marginalizados ou excluídos ao reservar vagas de cursos e turnos nas 59 universidades federais e nos 38 institutos federais de educação, ciência e tecnologia a alunos autodeclarados pretos, pardos e indígenas e pessoas com deficiência, proporcionalmente ao censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) no estado de cada instituição. Antes de o Tribunal Superior Eleitoral decidir que, nas eleições de 2020, os partidos deveriam destinar os recursos dos fundos partidário e eleitoral, além do tempo de propaganda eleitoral gratuita na TV e no rádio, de maneira proporcional ao número de candidatos negros, uma espécie de cota de candidatura eleitoral.
“Ser uma mulher negra impõe várias barreiras. Carolina era deslegitimada como escritora, colocando Quarto de despejo como mera obra de relato, negando qualquer processo criativo da poetisa. Por vezes a mídia imputava a autoria do livro para Audálio Dantas”, exemplifica Rebeka.
Reparação histórica
Carolina faleceu antes de a biblioteca do Museu Afro Brasil, no Parque Ibirapuera, em São Paulo, ser inaugurada com seu nome. Lá, desde 2000, é possível acessar uma coleção especializada em escravidão, tráfico de escravos e abolição da escravatura na América Latina, no Caribe e nos Estados Unidos. Devido à pandemia, o atendimento presencial da Biblioteca Carolina Maria de Jesus está suspenso, mas consultas podem ser feitas no site da biblioteca, que mantém um acervo raro digitalizado.
Há 11 dias, Carolina recebeu outra homenagem-póstuma: o título de Doutora Honoris Causa, sugerido pela Direção do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), e concedido pelo Conselho de Coordenação do Centro de Filosofia e Ciências Humanas.
A Comissão Acadêmica do Conselho levou em consideração 58 teses e dissertações das quais Carolina é tema nos últimos seis anos, segundo o Portal da Capes. A justificativa da comissão também aponta a necessária “reparação histórica do apagamento não de uma personalidade, mas de um segmento étnico que historicamente foi negado o lugar na cultura nacional”. Em outro trecho, o parecer da comissão reforça que a reparação começa no interior da universidade federal com este título e deve alcançar toda a sociedade.
6 personalidades negras
A AFPESP destacou seis personalidades negras que fazem parte da história do Brasil, apesar de ainda terem seu protagonismo negado em muitos espaços.