Por Artur Marques
No Estado Democrático de Direito, os servidores públicos são essenciais para a prestação de serviços isentos e de qualidade à sociedade, sem interferência de influências políticas, ideológicas e de interesses pontuais de pessoas investidas de poder. Daí o significado da estabilidade para os estatutários e do provimento dos cargos por concursos públicos, com respeito ao mérito e sem apadrinhamentos.
A função pública foi instituída no Brasil em 1808, com a chegada da família real portuguesa, que transferiu à Corte para o Rio de Janeiro devido às guerras imperialistas de Napoleão Bonaparte. Porém, durante todo o período colonial, depois na monarquia e nas primeiras décadas da República, os serviços eram precários, não havia carreiras e os cargos eram preenchidos por indicação de pessoas influentes.
A estrutura do funcionalismo público e suas respectivas atribuições consolidaram-se com a edição do Decreto-Lei 1.713, de 28 de outubro de 1939, durante o chamado Estado Novo, presidido pelo presidente Getúlio Vargas, para o qual a história reserva o designativo de construtor do moderno Estado Brasileiro. Os concursos públicos obrigatórios e o instituto jurídico da estabilidade compunham essa inovação.
A Constituição de 1988 institui o Estado Democrático de Direito, cujo o núcleo celebra a dignidade da pessoa humana, como princípio e como fundamento, e consagra as diretrizes obrigatórias incidentes sobre os prestadores de serviços à sociedade, que, no caso, são os funcionários públicos, responsáveis e imprescindíveis.
A estabilidade abrange somente os servidores concursados, assim professores, policiais, profissionais da saúde, membros do corpo de bombeiros, fiscais, quadros do INSS, do Poder Judiciário, assistentes sociais, dentre outros. São eles que executam cada proposta governamental, sempre coerente com a Constituição. Ela representa o pacto da convivência social escolhido pela Assembleia Nacional Constituinte, que foi a mais demorada, e com multiplicados debates e consultas as entidades organizadas, e por isso a mais democrática da história do Brasil. Cabe ressalvar que a estabilidade abrange somente os servidores concursados. Os ocupantes de cargos em comissão, são de livre nomeação do governante, sendo demitidos a qualquer tempo, como ocorre na iniciativa privada.
É importante, na interação entre os funcionários e os cidadãos, que se atente para o termo “democracia”, já que dele emerge o como agir das pessoas entre si, sempre com respeito à diversidade, ao pluralismo, à liberdade de expressão e repúdio a quaisquer preconceito e discriminação.
Tais reflexões e o reconhecimento da missão e relevância do trabalho do funcionalismo esbarram nesse momento com a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 32/2020, como pretendida reforma administrativa, que tramita no Congresso Nacional. Seu conteúdo está contaminado por dogmas que desmerecem a função pública e revoga o capital da experiência histórica acumulada em 134 anos. Constitui atraso extinguir os critérios técnicos que garantem isenção na atuação dos funcionários para deixá-los permanentemente sob o risco efetivo de servir a governos e não mais ao povo.
Recentemente, a imprensa divulgou o número de funcionários que servem aos Estados de diversos países, para o desmentido de tantos detratores do funcionalismo brasileiro, pois, o número de funcionários públicos naqueles países, em que uns não têm a extensão territorial do nosso, são muito maiores do que o Brasil.
Artur Marques é presidente da AFPESP e desembargador aposentado do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo.