A Folha do Servidor entrevistou a auxiliar de enfermagem do SUS e escritora que vem despontando com personagens de um lugar que ela chama de lá Fim-do-Mundo
Por Andréa Ascenção
Servidora pública há aproximadamente 16 anos e associada da AFPESP desde 2012, Lilia Guerra, 47 anos, lançou em setembro o romance “O Céu para os Bastardos”, cuja protagonista é uma empregada doméstica chamada Sá Narinha, uma representação fiel da categoria no Brasil, país que mais tem trabalhadores domésticos no mundo. São cerca de 6,2 milhões. Desses, 92% são mulheres e dentre elas, 68% são negras, de acordo com dados divulgados em 2018 pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea).
Lilia faz parte de um panteão de autores nacionais, como Lima Barreto, Graciliano Ramos, Lygia Fagundes Telles, Machado de Assis, Guimarães Rosa, Cecília Meireles, Euclides da Cunha, José de Alencar e Itamar Vieira Júnior, que ingressaram no serviço público e, frequentemente, retrataram a pluralidade do Brasil a partir do que vivenciaram também nas suas áreas de atuação.
Folha do Servidor: Em 2017, a filósofa e ativista norte-americana Angela Davis esteve no Brasil pela sexta vez. No auditório da Universidade Federal da Bahia (UFBA), ela disse: "Quando a mulher negra se movimenta, toda a estrutura da sociedade se movimenta com ela, porque tudo é desestabilizado a partir da base da pirâmide social onde se encontram as mulheres negras, muda-se a base do capitalismo". Sua mãe e sua avó foram empregadas domésticas. Você também já trabalhou como empregada doméstica e hoje é auxiliar de enfermagem e escritora. Suas filhas, Barbara e Thaís, trabalham com recursos humanos e comunicação. Como você quebrou a “sina da empregada doméstica”?
Lilia Guerra: Parecia uma espécie de rito de passagem. A mulher tornava-se adulta quando conseguia seu primeiro emprego numa “casa de família”. A torcida era pra que a sorte nos contemplasse com uma patroa indulgente. Eu acompanhava minha avó nos lugares em que ela trabalhava. Geralmente, ela transitava pelas residências dos membros dessas famílias. Frequentemente, era “emprestada”.
[Lilia se recorda de ouvir dizerem para sua avó: “Hoje está tudo organizado aqui, Maria. As crianças estão viajando, então você vai limpar a casa da minha mãe, vai passar roupa na casa da minha filha, vai auxiliar minha nora que acabou de ganhar bebê…”]
O mesmo salário para executar tarefas variadas, em lugares diferentes. Minha mãe, às vezes, ia ajudar minha avó, dependendo do tamanho da casa e da quantidade de tarefas a serem executadas. Me lembro particularmente de uma mansão que tinha muitas janelas. Algumas vezes minha mãe e minha tia, ao terminarem o expediente nas casas em que trabalhavam, iam auxiliar minha avó a limpar as vidraças, sem receberem pagamento por isso. Era uma tarefa que necessitaria ser desempenhada por uma equipe e mesmo sem remuneração elas iam ajudar, já que a mãe não poderia sair antes de terminar. Era um resgate. Éramos introduzidas na rotina das casas.
[Em outra ocasião, quando acompanhava sua avó no trabalho, Lilia lembra de ouvir: “Sua neta já está grandinha, Maria. Já pode te ajudar com uma loucinha, uma varrida. É bom porque assim já vai aprendendo a trabalhar.”]
Parecia muito natural que substituíssemos as mais velhas, conforme se retiravam, quando a saúde se esgotava. Para ser bem sincera, decidi mudar o percurso porque, quando as cenas que eu havia assistido por toda a vida começaram a se repetir comigo, eu já sabia qual seria o final da história. Fui a primeira pessoa na minha família a concluir o Ensino Médio. Minha filha mais velha foi a primeira a ingressar na universidade, seguida pela caçula. Ambas estão formadas hoje e outros membros da nossa família por parte de minha mãe também estudam e atuam em áreas profissionais diversas. Sim! A ação não movimenta um único indivíduo.
FS: Por cerca de 5 anos você trabalhou como empregada doméstica. Como migrou para a área da saúde?
LG: Minha mãe e tia, a certa altura, conseguiram empregos em um grande hospital em São Paulo. Minha tia, na equipe de higienização. Minha mãe, como copeira. Assim, começamos a conviver nesse ambiente. Daí, vislumbrei a possibilidade de, como elas, trabalhar também num grande hospital. Elas eram meus espelhos. E me incentivaram. No fundo, acho que as duas desejavam se tornar auxiliares/técnicas em enfermagem, mas não foi possível para nenhuma delas.
FS: Quando você se tornou servidora pública?
LG: Assim que terminei a capacitação, prestei alguns concursos e, desde então, atuo na área de saúde pública. Já trabalhei em unidades básicas e em serviços de pronto-atendimento. Há alguns anos sirvo em equipamentos especializados em prevenção. Portanto, desde que me tornei apta, nunca trabalhei no setor privado.
FS: Quando você teve a oportunidade de mudar de profissão, como as mulheres da sua família (mãe, tia e avó) receberam a notícia?
LG: Quando deixei as atividades como trabalhadora doméstica, minha avó e tia já haviam falecido. Minha mãe me presenteou com o primeiro avental quando anunciei que havia sido convocada para assumir o cargo. Ela chorou, ficou emocionada. Foi muito especial.
FS: Em suas obras você retrata a vida das pessoas que moram na periferia. Por que você escolheu levar a atmosfera e os moradores desses lugares para a sua narrativa?
LG: Moro no bairro Cidade Tiradentes há 37 anos. Morei durante os primeiros 10 anos da minha vida no bairro de Vila Mariana. Nos mudamos no final da década de 1980. Muitas famílias que habitavam regiões centrais das cidades se viram obrigadas a migrar para as periferias. Poucos conseguiram seguir pagando aluguéis cujos valores pareciam ajustados exatamente para provocar a debandada das famílias de classe baixa dos locais que se tornaram nobres para o mercado imobiliário. Higienização. Na mudança, levei comigo o hábito da leitura, fomentado por minha mãe. Morávamos ao lado de uma biblioteca, da qual me tornei sócia assim que fui alfabetizada. Em Cidade Tiradentes, não encontrei uma biblioteca pública. Foi um equipamento que procurei assim que nos mudamos. Com o tempo, alguns espaços comunitários passaram a ser organizados e resistem ainda hoje, com muita dificuldade. Acho que, vivenciar essa carência, a ausência de estrutura e tudo o que o abandono e o descaso podem ocasionar, me levou a ter o desejo de registrar experiências. E os personagens dessas narrativas, de forma natural, somos nós. Nós, que habitamos esses lugares.
FS: Em que situação surgiu a vontade de escrever um livro e como foi o processo de encontrar uma editora para publicá-lo?
LG: O desejo de escrever se deu, primeiramente por uma promessa feita à minha mãe: contar como se desenrolaram os acontecimentos acerca de meu nascimento, história relatada em meu primeiro romance, “Amor avenida”. A publicação foi difícil. Poucos exemplares pagos com muito sacrifício, para ver a promessa cumprida. Eu gostava de escrever desde criança. Composições de texto e redações eram meus exercícios favoritos na escola e a isso atribuo o fato de cedo ter começado meu contato com a leitura. Quando surgiu a ideia de escrever um livro, pareceu-me possível desenvolvê-la. A publicação era o maior desafio, já que eu não tinha nenhuma formação, nem informação sobre como escrever um livro e nenhum planejamento. Por isso, desconhecia também o que poderia ser considerado como obstáculo, como a falta de técnica, por exemplo. Eu comprei um caderno, examinei os documentos dos quais dispunha, coisas como cartas e postais. Passei a entrevistar minha mãe com frequência e a anotar tudo o que ela me dizia. Sim. Foram anos de silenciamento.
FS: Em recente entrevista para o repórter Walter Porto, publicada na Folha de S.Paulo, você revelou que sua meia-irmã por parte de pai disse: "Escrever um livro não é para qualquer um". Como isso afetou a sua vontade de romancear a vida de sua mãe?
LG: Na idade adulta, tive contato com uma irmã (jornalista e escritora), por parte de pai. E contei a ela que também gostava de escrever, anotar. Isso aconteceu antes de eu projetar realmente escrever e publicar um livro. Estivemos juntas apenas duas vezes. Uma delas, numa oficina de escrita que ocorreu numa biblioteca de São Paulo. Me inscrevi para participar e ela era a orientadora. Foi nessa ocasião, durante uma conversa com os participantes que ela me disse isso, que escrever não era algo que pudesse ser realizado por qualquer pessoa. Palavras que eu nunca esqueci. Não digo que foi essa a alavanca para que eu persistisse. Foi uma delas. É importante ressaltar que era um desejo de minha mãe, tornar pública essa passagem de sua vida.
FS: As suas obras são um retrato vivo e fiel de um Brasil que vive às margens da nossa sociedade, no Fim-do-Mundo, onde as pessoas têm uma rotina tão desgastante que vivem menos do que as que habitam os centros urbanos. Ainda assim você se dedica a uma segunda profissão, a de escritora. Não é incomum servidores públicos seguirem esse caminho literário. É coincidência? A que você atribui tantos servidores também servirem à sociedade obras que retratam os diversos Brasis?
LG: Eu acho que escrever também é servir. Não deixo de ser uma agente pública quando escrevo. E, quase sempre, os agentes públicos lidam diretamente com o povo, com os cidadãos. A premissa é ouvir. No caso da minha profissão, ouvir e observar são a base do atendimento. Eu preciso conhecer as necessidades de quem acolho. Acabo formando arquivos internos aos quais recorro espontaneamente quando escrevo. Obviamente, mantendo todas as precauções de segurança e sigilo. Não se trata de nomes, rostos, dados, especificações. São fragmentos que eu coleciono. Presentes da vida.
FS: A coleção de contos “Perifobia” foi finalista do Prêmio Rio de Literatura 2019. O que você espera do recém-lançado “O céu para os bastardos?”
LG: “Perifobia” foi bem acolhido. É um livro que me trouxe muitas alegrias. A principal delas, o contato com os leitores, as devolutivas. “Rua do Larguinho”, apresenta de forma mais ampla o ambiente onde se passa a maioria das histórias que conto. Inclusive, em “O céu para os bastardos”, procurei evidenciar realidades que assolam os moradores e trabalhadores periféricos através do cotidiano de Sá Narinha, a protagonista, e de seus vizinhos. Se bem que, às vezes, eu fico em dúvida e me pergunto se a protagonista é mesmo Sá Narinha. Sinto que Fim-do-mundo é o personagem principal, na verdade. Eu espero que as pessoas que se identificam com esses relatos se enxerguem inseridas na literatura. Que deixem de ser apenas figurantes. Às vezes, nem isso. Que se tornem visíveis para uma camada da sociedade que se escora e pisa sobre essa base. Que só realiza através da retaguarda dessa base. E que não reconhece isso. Que procurou por tanto tempo fazer com que a base se sentisse desimportante, que tentou esconder e negar nossa importância.
FS: Recentemente, seu rosto ilustrou um jogo de memória criado por alunos da Oficina de Letramento que acontece no Laboratório IFMaker do Instituto Federal Catarinense. O jogo desenvolvido faz parte do programa de Letramento Literário Antirracista, do Campus Camboriú. Quer dizer, seus livros também estão nas salas de aula, onde você, mulher, negra, periférica, foi percebida como um símbolo da luta antirracista no Brasil. Lilia, qual é o peso dessa representação?
LG: Ah! O jogo de memória antirracista… nossa! Uma surpresa bonita. E uma grande responsabilidade. Alguns dos meus livros, sobretudo, “Crônicas para colorir a cidade”, são bastante utilizados em salas de aula e interajo com os alunos leitores quando é possível. Eu preciso confessar que, no começo, sem perspectiva de alcance, sem saber muito bem onde meus livros iriam chegar, se é que iriam, eu escrevia de uma forma, digamos, mais fundamentada no que eu sentia, no que queria contar. Quando constatei que professores utilizam as obras em sala de aula, comecei a imaginar o que os textos despertam nesses alunos e de que forma os atingem. Não quero dizer com isso que eu deva ou possa adaptar formatos para pretender abordar temáticas específicas ou influenciar propositadamente. O texto deve ser livre, assim como as sensações que provoca. Mas, é inevitável pensar que, de alguma maneira, imprimirá alguma nota nesses leitores. Assim como os autores que li deixaram notas impressas em mim.
FS: Lilia, agora algumas perguntas para você completar de bate-pronto.
Ser servidora pública é sinônimo de... liberdade. É propiciar ao cidadão a liberdade de se orientar, de ter um norte. Agenciar a conclusão de suas necessidades e garantir o direito de tê-las concluídas.
E o SUS? É simplesmente o reflexo do princípio que deveria reger todas as coisas no universo. O da igualdade.
Meus livros favoritos são: Ah! Certamente, “Quarto de despejo”, de Carolina Maria de Jesus é o livro da minha vida, apesar de “Diário de Bitita” ser o meu favorito. Eu aprecio muito os livros de Pearl S. Buck também. Os li na adolescência e foram muito importantes para que eu desenvolvesse o hábito da leitura. Atualmente, privilegio a literatura feita por mulheres. Conceição Evaristo, Miriam Alves e Ruth Guimarães são algumas das autoras que li recentemente.
O que me inspira escrever é: Tudo o que respira, me inspira. Posso escrever inspirada por uma canção ou uma paisagem, mas as gentes e os bichos são minhas mais frequentes fontes de inspiração.
Faz parte da trilha sonora da minha vida: “Minha gente do morro”, composta por Jaime e Candeia, interpretada por Clara Nunes. Essa canção integra o LP “Esperança” e o refrão diz: “…mas um dia, hei ver o meu povo feliz a cantar…”. Eu acredito nisso.
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